12 outubro 2011

Turismo cervejeiro na Bélgica (Bruxelas) - Visita à cervejaria Cantillon



De volta das minhas merecidas férias quero dividir com vocês uma das melhores experiências cervejeiras que tive: a visita à cervejaria Cantillon em Bruxelas. A Cantillon é uma cervejaria familiar e uma das poucas que ainda produz um dos mais tradicionais estilos de cerveja da Bélgica: as Lambics, cervejas de fermentação espontânea. Aproximadamente 1000 hectolitros (1 hectolitro = 100 litros) são produzidos anualmente com um equipamento antigo, datado do século XIX.

Paul Cantillon, o pioneiro.

Em 1900, Paul Cantillon estabeleceu a cervejaria em Anderlecht, em Bruxelas. Naquele tempo ela era uma das centenas de cervejarias da capital. Depois da II Grande Guerra, seus filhos Marcel e Robert tomaram conta da produção, que em 1958 foi de 2.500 hectolitros. 10 anos depois, Jean-PierreVan Roy, genro de Marcel, entrou para os negócios e deu continuidade à tradição da família. Hoje, seus filhos, Jean e Julie Van Roy são os responsáveis por manter os negócios.

Robert e Marcel Cantillon (esquerda) e Jean-Pierre Van Roy (direita). 
Jean-Pierre estava lá no dia da visita e ainda trabalhando, apesar de que não faz mais cerveja.

Visitar a Cantillon é quase como entrar em uma máquina do tempo. Realmente os equipamentos são bem antigos e a forma de fazer cerveja é das mais artesanais possíveis, a não ser pela moderna engarrafadora. As cervejas são amadas por uns e odiadas por outros. As notas produzidas pelos mais de 80 microorganismos responsáveis pela fermentação e principalmente o caráter ácido e acético pronunciado causam estranheza em algumas pessoas. Eu particularmente adoro e tive a grata oportunidade de provar as suas cervejas novas e em boas condições, além de também ter provado algumas raridades e ter trazido outras para casa. Da lojinha deles, comprei todos os souvenirs possíveis. Se você acha que o tom desse texto está muito piegas, você está certo. Eu sou um apaixonado declarado pelas cervejas e pela tradição da Cantillon. Abaixo algumas (muitas) fotos da visita com textos explicativos.

Sala de brassagen da Cantillon.
Os grãos moídos, cerca de 35% de trigo e 65% de malte de cevada, caem direto na tinha de mostura. Cerca de 1.300 kg de grãos são utilizados em cada brassagem. O cervejeiro utiliza 10.000 litros de água quente para extrair os açúcares dos grãos. Essa sala fica no andar térreo.

Moinho de grãos.
No pavimento superior ficam o moinho de grãos (centro), um reservatório de água quente em aço inox com capacidade para 5000 litros (direita) e a tina de fervura (esquerda).

Tina de fervura.
Aqui o mosto é aquecido. Os cerca de 10.000 litros de mosto são bombeados da tina de mostura até aqui. Após 3 a 4 horas cozinhando, o líquido fica esterilizado e são perdidos cerca de 2.500 litros por evaporação. 20kg de lúpulo envelhecido são adicionados nessa fervura. O lúpulo utilizado é envelhecido para não dar amargor e aroma, mas somente aproveitar as propriedades conservantes.

Depósito de grãos.
Utilizado para estocar grãos durante a temporada de fazer cerveja, que na Cantillon vai do final de outubro ao começo de abril.

Tanque de resfriamento.
Um dos locais mais importantes da cervejaria. Os 7.500 litros de mosto são bombeados para este tanque aberto. O mosto quente vai resfriar durante a noite até 18 a 20⁰ C. Este resfriamento só pode ser obtido durante os meses frios, por isso a temporada de fazer cerveja vai de outubro a abril. Dependendo das condições climáticas (vento, temperatura, chuva) venezianas podem ser abertas ou fechadas nos lados do tanque para controlar a ventilação. Durante este resfriamento o líquido é inoculado com os microorganismos selvagens presentes no ar. Estes microorganismos são específicos dessa sala e serão os responsáveis por iniciar a fermentação da cerveja. O mosto é inoculado quando chega a temperatura de 40⁰ C. Em uma cervejaria comum, deixar o mosto ser contaminado estraga a cerveja pois o fermento selvagem ou bactéria vai competir com a levedura escolhida para fermentar a cerveja. Na Cantillon a levedura não é escolhida, simplesmente está lá, no ar, nas fretas dos tanques, nos barris de madeira, em todo lugar.


Tanque de inox.
Na manhã seguinte, o líquido flui para este tanque. Aqui a temperatura e o conteúdo de açúcar são controlados pela última vez.

Barris de madeira.
Do tanque de resfriamento, o líquido é bombeado para barris de carvalho e madeira de castanheira, cada um com capacidade entre 255 e 500 litros. Entre 13 e 28 barris são enchidos em cada produção. Após alguns dias, a reação das leveduras selvagens com os açúcares provocam uma fermentação. Essa reação inicialmente é violenta e visível. Por 2 ou 4 dias a produção de gás carbônico é tão grande que os barris não podem ser fechados pelo risco de explosão. Uma espuma branca sai pela abertura do barril. Cerca de 5 a 10 litros são perdidos em cada barril. Infelizmente não tenho foto dessa reação, já que naquele dia, final de setembro, ainda não havia começado a produção de cerveja.

Barris de madeira com cerveja fermentando.
A fermentação dentro dos barris dura até 3 anos. Hoje são conhecidos 86 microorganismos diferentes responsáveis pela fermentação das lambics. Dois deles são bem importantes: o Brettanomyces Bruxellensis e Lambicus. Eles assimilam os açúcares não fermentáveis (dextrinas) e reduzem o conteúdo de açúcar em uma lambic de 3 anos para somente 0.2%.

Registrando uma prova de que realmente fui lá!

Teias de aranhas entre os barris. 
Cena comum na Cantillon. Diz-se que as aranhas são importantes por serem predadoras de insetos, atraídos pelos açúcares e frutas presentes nos barris. Assim o equilíbrio é mantido dentro da cervejaria sem a necessidade do uso de inseticidas. A lambic fica pronta para beber em poucas semanas, mas o cervejeiro precisa esperar pelo menos um ano para obter uma cerveja melhor que possa ser utilizada para fazer outros produtos, como Gueuze e Fruit Lambics.

Após a fermentação em barris de madeira, a cerveja é bombeada para um tanque de inox (no centro, ao fundo). Muitas partículas estão presentes na cerveja nesse momento. A cerveja passa por um filtro de placas de celulose (a frente, no centro), removendo todas as partículas mas deixando o açúcar residual, importante para a refermentação dentro das garrafas. A cerveja filtrada é bombeada para dois tanques de inox (ao fundo na direita dá para ver um deles) conectados a maquina engarrafadora através de tubos. A Gueuze é feita pela mistura de Lambics de 1, 2 e 3 anos. De cada 10 barris provados, 5 ou 6 são selecionados para fazer a Cantillon Gueuze. As Fruit Lambics são feitas pela adição de frutas regionais (cerejas, framboesas ou uvas). Durante o verão, são adicionados cerca de 150kg de frutas em 500 litros de uma lambic de 2 anos. A reação conhecicda como maceração ocorre durante pelo menos 3 meses, extraindo o sabor, a cor e o açúcar das frutas. Depois um terço de Lambic nova é adicionada para dar mais açúcar para uma fermentação dentro da garrafa. A cerveja é filtrada e engarrafa.

Antiga engarrafadora não mais utilizada.

Engarrafadora moderna.

Linha da engarrafadora e adega com garrafas maturando cerveja.
Depois de engarrafada, a cerveja fica durante alguns meses na posição horizontal refermentando e maturando. O açúcar da Lambic nova dá início a uma nova fermentação. A Lambic tradicional é descarbonatada, sem gás. A Gueuze tem bastante carbonatação produzida durante a refermentação dentro da garrafa.

Mais cerveja na adega.

Souvenirs à venda na Cantillon. 
Copos, taças, bolachas, camisetas, suéteres, posters, além das cervejas para levar para casa.

Cervejas disponíveis para degustação no local.

Cantillon Lambic ( Lambic pura).
Quase que totalmente sem gás. Tradicional aroma e sabor de lambic, com notas animais de couro, celeiro, a chamada sela de cavalo, um acético bem presente mas sem agredir, azedinha no final com algum residual de doçura.

Cantillon Gueuze.
Aqui a carbonatação aparece bem com as mesmas notas de levedura selvagem da Lambic nova. Ela também é mais azeda e acética e bem seca. Muito aromática com notas de vinho e da levedura selvagem.

Cantillon Kriek (cerejas).
Belíssima apresentação, bem rosada. Já provei antes a Kriek bem envelhecida, cerca de 10 anos, mas nova ela é bem mais frutada, com mais presença do sabor da cereja. Quanto mais envelhece, mais as notas de frutas desaparecem e dão lugar as notas de levedura selvagem e acidez. Esta é menos ácida que a Gueuze, preservando um leve dulçor da fruta.

Cantillon Rosé de Gambrinus (framboesas).
Intensamente frutada, e com as notas de levedura selvagem, vinho e madeira. A framboesa é uma fruta mais ácida que a cereja usada na Cantillon, por esse motivo, a Rosé de Gambrinus é bem mais ácida que a Kriek, além de ser mais seca também. 

Cantillon Faro.
Faro é a mistura de Lambic nova com açúcar. Eles não engarrafam essa mistura, da mesma forma que também não engarrafam a Lambic pura. A Faro é feita na hora mesmo. Já sabia que Jean van Roy não gostava da Faro por ele achar que foge um pouco da tradição mas insisti em provar já que não teria outra oportunidade depois. Ela é bem mais leve devido ao açúcar que atenua a acidez, mas mesmo assim mantém as características da Lambic e é bem seca.

Cantillon Zwanze 2011, edição especial anual. Leva uva pinot d`aunis.
Essa eu dei sorte. Por ter conversado bastante com Jean e declarado minha paixão pela Cantillon, ele me ofereceu uma taça da Zwanze 2011. A Zwanze é uma série especial lançada uma vez ao ano desde 2008 com receitas diferentes. A 2008 foi feita com ruibarbo, uma planta bem azedinha. A 2009 foi feita com "Edel Flowers" (não encontrei tradução, mas não é a edelweiss pelo que conversei com Jean). Essa passou a ser fabricada na linha normal com o nome de Mamouche. A 2010 foi feita com uma cerveja ale de trigo que fermentou na Cantillon sendo também inoculada com fermento selvagem, tendo portanto uma fermentação mista. A Zwanze 2011 foi feita com uvas pinot d`aunis. Preserva bastante as caraterísticas de uva e mostra muita semelhança com vinho, uma acidez bem marcante e bastante seca

Cantillon Zwanze 2011, com uva pinot d`aunis, sua garrafa e rótulo.
Infelizmente a versão 2010 chegou a ser oferecida por mais de 80 Euros no e-bay, enquanto foi vendida somente por 6 Euros na cervejaria. Por esse motivo, agora em 2011, Jean engarrafou somente 1/3 da produção e enviou o restante em barris para vários países, dando oportunidade aos amantes das cervejas ácidas de provarem a raridade em seus países e evitando a especulação e o dinheiro fácil para alguns. Nenhuma garrafa dela será vendida para consumo fora da cervejaria.

Jean Van Roy, o artista da Lambic e Gueuze, e eu.


9 comentários:

Manzapivo disse...

Bom relato Rodrigo!! Eu sonho con beber as cervejas lambic e derivadas, seus sabores deben ser unicos.
Parebens Rodrigo pelo viagem!!

Rodrigo Campos disse...

Olá Manza,

Realmente são cervejas únicas. Uma acidez bem peculiar que chega a assustar algumas pessoas mas que me agrada muito. Possuem algumas características bem próximas das de vinhos brancos mas continua sendo cerveja. Melhor ainda!

Obrigado.

  disse...
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  disse...
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  disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Claudinei disse...

Parabéns, Rodrigo, pela viagem e por esta visita. Este deve ser o "tipo" de cerveja mais antigo da História, não? Deve vir de uma época onde as coisas fermentavam espontânea e acidentalmente e sem um mínimo de conhecimento por parte das pessoas...

Estou sentindo falta das La Trappe no seu blog. É a abadia trapista com a maior variedade de estilos, sete ao todo. A Dubbel e a Quadrupel, para mim, são fantásticas.

Abraço.

Claudinei

Rodrigo Campos disse...

Oi Claudinei,

A visita na Cantillon foi um dos pontos altos da viagem.

Realmente estava esperando para ter melhores fotos das La Trappes para lançar um post. Agora já estou perto disso. Também adoro a Quadrupel deles. Acho sempre sabor de banana passa nela.

Abraço.

André Silva disse...

Muito legal Rodrigo!
Mês que vem estou indo pra Bélgica e vou visitar a Cantillon.
Você precisou marcar horario? O Jean fica sempre por lá ?

Grande abraço!

Rodrigo Campos disse...

Oi André,

Dá uma olhada no site da Cantillon para saber mais sobre a visita. Parece que só precisa agendar se for um grupo. Quando fui eu não marquei nada. Só verifica os horários http://cantillon.be/br/Cantillon.php?lang=3&page=7

Não sei te dizer se o Jean Van Roy fica sempre lá mas a cervejaria
é familiar e acredito que você deve encontrar ele por lá a maior parte do tempo. Quando fui até o pai dele, Jean Pierre Van Roy, estava.

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